Paixão de Ribalta

Era o circo das mil e uma noites, espetáculo de cores, luz e ilusão, que sempre apaixonou tantos e tão poucos de todas as idades.
Era o inicio da noite, as cores lavanda do por de sol iam dando lugar ao azul escuro da noite. As pessoas chegavam de todos os cantos da cidade. Era um espetáculo de uma noite apenas, fenómeno tão raro quanto um eclipse lunar.
Eu estava tão nervosa. Ficava sempre assim, a cada nova cidade, a cada novo espetáculo. Suponho que nasci com uma fagulha de medo que se incendiava pelo meu corpo a cada nova noite de trabalho. Era uma trapezista, uma acrobata dos ares, de alturas que nem queria imaginar não fosse o meu corpo tremer que nem varas verdes. Foi uma profissão passada da minha família, da mesma maneira que alguém poderia deixar joias para herança de outrem. Os meus pais, as minhas duas irmãs, e eu. Havíamos tido o nosso destino escrito, ainda antes de termos posto os nossos pés em terra firme. Também os seus filhos, e os meus teriam o mesmo Destino.
A diferença era, que eu não tinha nascido para isto.
Os espetáculos começavam às oito da noite, e pouco antes, tinha por hábito esgueirar-me para as cortinas, para ver o público chegar, sentar-se com grandes baldes de pipocas que iriam dividir com outros. Na minha família, nunca tínhamos feito nada daquilo, sendo nós o entretenimento ao invés dos entretidos.
Invejava a liberdade.
Vi-te assim que chegaste. A luz cálida reflectida no teu cabelo de ouro, e os teus olhos de esmeralda pareciam ter visto muitos outros Mundos. Vinhas acompanhado de um homem e uma mulher mais velhos e o cuidado que tinhas para com eles, fazia-me questionar como seria ter um calor protetor como aquele que emanava das tuas mãos, e o som que as palavras teriam a escaparem-se dos teus lábios.
E depois a música carnavalesca começou o seu cortejo, interrompendo-me do meu sonho acordado. As minhas irmãs puxaram-me para o seu encalço, mantendo-me debaixo do seu olho, quais guardas de uma prisão.
O apresentador avançou, e nós íamos nos seus carris. O público irrompia em salvas de palmas, como se já tivéssemos feito algo de extraordinário.
Fiquei mesmo diante de ti. Fixei os meus olhos nos teus, como quem fixa uma luz no fundo do túnel, que nos guia e que nos vale como um porto de abrigo. A minha respiração estava presa na garganta, impossível de sair. Fitavas-me como se tivesses visto algo de mágico, sobrenatural. Os teus lábios estavam entreabertos, e tive vontade de beijá-los, sentir o que era ser como tu.
Depois tive que me afastar, ainda não era a minha hora, mas foi como se deixasse um Mundo inteiro para trás, quando me ausentei de ti.
O nosso número era dos últimos, pelo que sempre tive o hábito de vaguear, em forma de um sonhar acordado. Escapulia-me para a parte de trás da tenda, por entre os animais, e ar fresco que me prometia Mundos e fundos.
Dirigi-me para a rua. A Lua lá estava no seu lugar, pronta, num crescendo lindo, como se estivesse à espera que o espetáculo de iniciasse.
- Lindo, não é?
Saltei ao som daquela voz calma, desconhecida, e quente. Voltei-me na tua direção.
E lá estavas tu com o teu olhar posto na Lua, como se de alguma inspiração precisasses.
- Estava a referir-me a ti. - disseste.
Sorri, e senti as minhas bochechas a ficarem carmesim.
- És muito encantador. - disse-te.
- És feliz aqui? - perguntaste.
Era uma pergunta simples, mas senti como se carregasse o peso de tudo nos ombros.
Eras um perfeito desconhecido, mas vias o meu interior como se de um espelho se tratasse.
- Como sabes?
- Tens uma tristeza no teu olhar.
Sorri tristemente.
- Às vezes questiono-me como será estar do outro lado. A liberdade de me ir embora.
- E porque é que não o fazes?
- Estou presa aqui. A este sitio. A tradição.
- Porque não a quebras? - perguntaste-me e parecia algo tão simples de se responder.
Lembro-me que brinquei com os meus dedos, como se isso me valesse de um escape.
Sabia a resposta, mas era um pouco dolorosa de entregar:
- Falta-me a coragem.
Não conseguia dar o salto, mesmo que a minha vida dependesse disso.  Por muito que o amor, a liberdade me chamassem para um sitio inteiramente diferente daquele de onde me encontrava.
Corri para o interior da tenda.
Com o coração nas mãos.
E a promessa de querer saber o teu nome nos meus lábios.

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