Rainha do gelo, como sem saber ela não queria estar sozinha
A
voz mecânica soou ao longo de toda a carruagem, anunciando o que
seria a paragem seguinte. O som propagava-se que nem um eco
longínquo, apesar da sua origem não sair do mesmo lugar, tal como
seria de esperar.
Ao
fim de alguns segundos, já me havia esquecido qual era o lugar que
havia sido anunciado. Afinal, não tinha realmente qualquer
importância.
Entrara
na carruagem pela viagem, e não pelo Destino.
Um
solavanco controlado atrapalhou a trajetória do comboio, como um
soluço atrapalha a fala de uma criança pequena. De repente, e sem
grandes consequências. Troquei a perna que tinha traçada, e voltei
a verificar que o botão do meu casaco se mantinha categoricamente
fechado, como tinha feito exatamente trinta minutos antes daquele
instante.
Fazia
aquilo uma vez por semana. Entrava na estação de comboios ao fundo
da rua onde ficava a minha casa. Era a que ficava mais perto. Afinal
de contas, a existência de um destes edifícios públicos nas
redondezas entrara na lista de considerações a ter, quando procurei
o meu atual apartamento. Depois, verificava o quadro de partidas e
chegadas, tentando ignorar o máximo possível todas e quaisquer
pessoas que não atraiam nem de perto nem de longe um segundo da
minha atenção. Escolhia a direção que mais despertava a minha
atenção, e comprava um bilhete com essa finalidade.
O
veiculo começou a abrandar, e travou um pouco menos do que a fundo,
sem dúvida na paragem que tinha sido mencionada anteriormente.
Respirei fundo no momento em que as portas se abriram.
A
verdade, e para meu grande alivio, não houve uma quantidade
alarmante de pessoas a entrar. Pelo menos, através da porta que
estava ao nível do meu campo visual. Na carruagem seguinte,
apercebi-me da entrada de uma senhora de bengala e cabelo branco,
perfeitamente penteado. O seu casaco era igual ao meu. Apenas
indicava que era uma pessoa de muito bom gosto.
Ouvi
por instantes apenas, a barulheira desnecessária vinda da rua.
Apenas poderia significar que uma outra porta se havia aberto para a
entrada de mais alguém. Pressenti o que me poderia parecer um
momento de hesitação, como se tivesse, quem quer que fosse que
houvesse acabado de entrar, se apercebido que estava a entrar num
sitio completamente novo. Percebi o motivo da hesitação. Era de uma
grande consideração a ter, o lugar onde nos sentamos num veiculo
como o comboio, onde cada perspetiva dos locais por onde passamos
ficará para sempre gravada na nossa memória. Duas viagens de
comboio, afinal de contas não são iguais.
Ouvi
seguidamente passadas pesadas. Era sem dúvida um homem. Fixei o meu
olhar no comboio que parou do outro lado da plataforma.
Uma
respiração pesada, a combinar com os passos que já não se faziam
ouvir, fez-se anunciar depois do individuo se sentar no lugar diante
de mim.
O
comboio voltou a andar.
Remexi-me
no meu lugar. Troquei a perna que mantinha cruzada.
O
homem não era nada de especial. Cabelo negro, tez bronzeada. Não
lhe conseguia ver o olhar, pois mantinha-o concentrado nos seus
pertences ainda. Estava completamente vestido de preto, e percebi o
peso dos seus passos, pois as suas botas de tropa eram enormes. Não
devia ser muito mais velho do que eu, mas o rosto consegue enganar,
talvez como muitas vezes as palavras o fazem.
- Desculpe?
- disse.
Os
seus olhos eram cor de avelã. Um ligeiro sorriso apareceu-lhe no
rosto conforme me fitava. Acho que estava a tentar ligar o charme.
Passou uma mão pelo cabelo, puxando-o para trás. Mal ele sabia que
tais exercícios, decididamente não funcionavam comigo. A sua
aparência não me era minimamente conveniente ou encantadora.
- Sim?
A
voz mecânica. O seu tom era algo elevado e vazio, entrando e saindo
exatamente à mesma velocidade, deixando uma ausência completa de
mossas.
- Importa-se
de se sentar num outro lugar?
O
homem soltou uma pequena gargalhada, como se efetivamente eu houvesse
acabado de dizer alguma piada. Não percebi realmente. Reparei numa
pequena tatuagem de uma rosa dos ventos no seu dedo indicador. Nunca
gostei de tatuagens. A nossa pele deve ser perfeita, tal como no dia
em que nascemos. E para além do mais, do que é que lhe serviria?
Acharia ele que seria útil acaso se tivesse perdido?
- Porque
é que deveria fazer isso?- Porque existem muitos outros lugares sem uma pessoa que seja em redor. Porque é que deveria estar nos arredores de outro ser vivo?
Ergueu
uma sobrancelha. Se pensasse verdadeiramente no assunto, era como se
fosse um desenho animado em vida real. Ao fim de alguns segundos, uma
câmara fotográfica de aspeto bastante profissional surgiu nas suas
mãos. Levantou-a ao rosto, a sua objetiva um outro tipo de intruso,
e ouvi um clique seguido.
- Parece-me
bem. - disse ele, depois de avaliar o resultado, mas não era como o
intuito que eu ouvisse. Fitou-me depois, mantendo a sua atenção
aparentemente apenas em mim – Mas acho que estás a fazer a
pergunta errada.- E porque é que me deveria importar com o que acha?
- Au! Gelada!
- Já me chamaram isso. Aliás, algo como Rainha do gelo é a expressão mais correta.
O
homem encolheu os ombros, como se não soubesse realmente o que me
responde, o que achava do que lhe havia acabado de dizer.
- Ora
disso já não sei, mas não é o que esta fotografia me diz.- E de onde lhe surgiu essa autorização?
O
homem pousou a câmara ao seu lado, como se de repente lhe pesasse o
mesmo que cem elefantes.
- É
o que faço. Sou um fotógrafo.- Isso dá-lha autorização para tirar fotografias a pessoas alheias? - perguntei.
Sentia-me
algo irritada. A sua presença estava a dificultar a minha capacidade
para desfrutar da minha viagem de comboio. Por outro lado, estava
também algo curiosa. Quão mais ridículo poder ser o seu discurso?
- Basicamente.
E tu? Andas de comboio o suficiente para te achares no direito de
dizeres às pessoas onde se devem sentar?- Sim, mas acho que tal não vem para o caso. Para além do mais só tenho oportunidade de fazer isto uma vez por semana. Tenho o direito de fazer a viagem da maneira como quero.
- Como é que isso funciona?
- Qual é a dificuldade em perceber? Escolho um comboio onde entrar e faço a viagem até encontrar uma paragem que me agrade.
Ele
ficou a observar-me durante uns longos momentos. Era como se
estivesse a tentar decifrar os significado das palavras que lhe havia
acabado de dizer, como se pudesse ter um segundo significado. Não o
tinham. As minhas palavras eram apenas isso. A sua superficialidade
poderia não atingir muitos, mas o seu sentido não deveria ser assim
tão facilmente perdido. Será que ele não deveria estar a prestar a
devida atenção?
- O
que é que quer dizer?- Como é que sabes quando sair?
Encolhi
os ombros. O comboio tomou um novo embalo. Ele olhou para um ponto a
um nível acima da minha cabeça. Ganhei a sensação estranha que
poderíamos ser as últimas pessoas no veiculo.
- Pode
ser por qualquer coisa para dizer a verdade. Uma cor particularmente
interessante. Um cheiro que me desperte o apetite. Uma pessoa
interessante.
O
homem continuava a sorrir. A sua expressão estava a deixar-me
ligeiramente desconfortável. Era desconcertante o à vontade com que
certos estranhos se impunham no quotidiano de um outro.
- E
ainda dizes que te chamam Rainha do gelo. Se queres saber a minha
opinião, tens muito mais facetas do que poderiam esperar. Essas
pessoas são apenas cegas.- A minha cara é apenas minha. - respondi, sem saber muito bem onde é que ele queria chegar.
A
voz mecânica. O movimento. Estávamos muito perto do fim da linha.
Nada de interessante havia chamado a minha atenção.
Ele
tornou a rir. Reparei que os seus lábios eram finos. De um perfeito
tom rosado. Era mentira. Aquele tempo todo tinha estado a tomar
atenção. Como se fosse a única coisa que existisse.
- A
próxima paragem é a minha.- Hum. - respondi de volta.
- Vais até ao fim da linha?
- Provavelmente.
- E depois?
- Provavelmente, tomarei o comboio em sentido contrário.
- Até que algo chame a tua atenção?
- Já entendeu.
Os
soluços. A mesma rotina que se inicia de cada vez que chegava uma
nova paragem. O fim de uma história ou inicio de outra. Acho que
depende sempre um pouco da perspetiva.
Uma
simples viagem de comboio. Ou algo mais. Depende sempre. Nada é
meramente preto, ou até branco. Toda uma palete se estendia de cada
vez que colocava um pé dentro do metal. Era por isso que vinha
nestas viagens. Era uma diferença extraordinária do cinzento que
cobria a maior parte do meu dia.
Ele
ergueu-se do seu lugar. Acenou-me em despedida. Não sei porquê,
respondi.
O
comboio parou.
Ele
saiu.
Fiquei
sozinha.
A
viagem continuou.
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