Autómato ou como na verdade, ela não esteve realmente aqui

Ele pegou no pequeno envelope, que ela lhe havia deixado antes de desaparecer uma última vez. Havia sido o seu jeito de dizer adeus. Não por ela. Ela partira de boa fé, sem quaisquer arrependimentos daquilo que não havia feito. Mas por ele. O homem, cansado pelos últimos dias sem dormir, porque quem é que o consegue fazer quando os pesadelos são destruidores, retirou a folha de papel amarela para fora, e começou a ler:
Nasci feia, tão feia quanto um bebé pode nascer, num Mundo que nada fez para a abraçar em condições. A culpa não foi minha. Mas, se formos a pensar bem no assunto, qual o ser humano neste planeta que não diz algo deste género? Quererá isso dizer que sou apenas mais uma? A única coisa que achava ter a meu favor era a minha perna fora da caixa.
Até isso perdi.
Pela altura em que me conheci, também me perdi. Sei que isso sim, é algo difícil de conseguir. Foi como se de um interruptor desligado estivéssemos a falar. Os meus contornos desapareceram. O Universo tratou de mandá-los a fava. Creio que em contrapartida, sempre tentei fazer o mesmo. No entanto, uma bomba atómica pulverizou-me. Tornei-me um borrão. Isto, na falta de uma melhor palavra.
Converti-me numa mancha na realidade, e a minha imaginação não lhe ficou muito atrás. Mas tinha todas as cores que outros poderiam querer, como se acabasse por ser feita às suas vontades. Aos olhos de outros, não era o patinho feio que imaginava. Sei que aos teus olhos não o era. E no que diz respeito a todos os outros, acho que isso é algo de bom. A vida pode dar asas a todos os que encontra, no entanto, nem sempre tem a sabedoria de lhes ensinar como usá-las.
Sou um ser curioso. E se a curiosidade, eventualmente, acabou por matar o gato, quererá isso dizer que era suposto eu ter vivido para sempre? Impossível! Mas, como Alice costumava dizer, às vezes penso em oito coisas diferentes antes do pequeno-almoço. Porque é que esta não poderia ser uma delas?
Existe mais há minha história. Se bem que, não poderá afinal de contas, ser a minha história. Essa já terminou. E no fim do dia, sou um borrão. A minha história é parte do vácuo. E no entanto, apesar de pertencer a essa imensidão, ou ao vazio da mesma, não faz realmente parte de nada. Sou um ponto. De onde nascem um sem número de grandes fios condutores, que tem por hábito ligar-se a outros pontos. Mas cortei agora todas as minhas ligações.
No caso decorrente, sou um trambolho diferente de raridade incalculável.
Mas o Mundo deu-se ao trabalho de me colocar debaixo dos seus pés. Fiquei assim amolgada. O suficiente para perder a minha forma. Pergunto-me o que terá acontecido com aqueles que insistiam que aqui desse uns quantos passos, como se tivesse a obrigação de vir cumprir um qualquer papel.
Será que também eles nasceram feios? Não sei porquê, não querendo desmoralizar as fibras que os compunham, não lhes conheci o mesmo tipo de fealdade que me enchia os poros. Era como se de algum modo, ambos tivessem nascido no meio da Natureza, reduzindo-se na imensidão de todos os detalhes que os seus respetivos ambientes lhes proporcionaram. Sempre me senti o seu contrário. Produzida em ambiente fabril. Feita de plástico, em partes desiguais, e de cimento, em partes semelhantes. Pelas minhas veias corria óleo de motor, mas o meu coração estava em mera suspensão à bastante tempo.
Sou quebradiça e rija. Era. O melhor de dois mundos. E aquilo que nenhum dos mencionados esperava.
Pela altura em que me pus de pé, ele, o individuo pouco iluminado, que fazia parte de metade da ideia original por trás de mim, era um fantasma. Como disse antes, era de concluir que a culpa não era sua. O universo em seu redor, o lugar remoto onde ele cresceu era pequeno. Talvez demasiado. Como se de uma caixa estivéssemos a falar, que se ia aconchegando, pouco e pouco em seu redor, ou mesmo para dentro dos limites do seu corpo. A cada dia que passava. Foi uma porcaria. Não lhe deu qualquer espaço para crescer, para evoluir. Isto deixou-o vazio. De uma certa forma, precário.
Um fantasma, deu origem a um autómato.
A outra metade da minha criação, era uma gigante. Delicada. Ainda que de uma força que muitos poderiam prever, mas nenhum poderia calcular. Era a mais alta, e em alguns modos, a mais redundante. Dentada em certos pontos, como se o vento lhe tivesse acertado os últimos detalhes, que antes eram ainda demasiado esbatidos. Mas a sua alma era maior do que a própria vida, e a sua inteligência em organizar os seus próprios passos, nunca antes vista.
Dia a noite, as minhas duas metades.
Deixo-te, mas não realmente, porque no fundo, não estive aqui.
Quem diria?”
As lágrimas enchiam-lhe os olhos, pelo final da carta. O papel caiu-lhe dos dedos.
O homem queria abraçá-la.
Mas não podia. 

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