Conversa de um

Olá estranho.
Céus. O ar está tão parado aqui dentro. Como se tivesse acabado de entrar nuo túmulo  de algum faraó perdido  no tempo.
Deixa-me fechar a porta. Sabes bem que não deveria estar aqui. Ainda me poderia meter em sarilhos. Ou a ti. Mas provavelmente não ficas com problemas. Tens um passe para te livrares dessas coisas. Sempre tiveste esse jeito acerca de ti. Mas ainda assim, não quero que ninguém me perceba aqui dentro. Quero o nosso tempo dentro da bolha.
Bem, assim é muito melhor! Quem é que teve a ideia de deixar as cortinas cerradas nesta maneira? Deus, tu já estás tão branco. Quão melhor fica o teu rosto com o pedacinho de luz que agora entra? Quase que te tornaste a tua própria estrela. Bem, de qualquer das maneiras o teu ego sempre tomou essas proporções. Portanto, algures na tua cabeça, provavelmente já te considerasses um pequeno grande astro luminoso. Sem dúvida nenhuma que sim. E não posso deixar de sorrir. Nem de te revirar os olhos, perante o quão tão cheio de ti consegues ser. Mas perdoo-te. Porque gosto um pedacinho de ti.
A brisa que agora corre, a partir da janela aberta, causa-me arrepios no topo da cabeça. Está a ficar cada vez mais frio. Só espero que o ar circule depressa, para poder fechar a janela de novo. Não te quero dar uma pneumonia ou algo do género. Mas sei o quanto gostas do ar livre, como se te devessem ter feito pássaro, em vez de ser humano.
Tenho saudades de ouvir o teu chilrear. A tua gargalhada despreocupada. Acho que já passou tanto tempo, que me tomo com medo de esquecer o teu som, mais dia menos dia.
É impressão minha, ou os círculos negros por baixo dos teus olhos aumentaram? Estás a ficar com olheiras gigantes? Como é que isso é possível? Só mesmo tu, meu tonto. Quero dizer, passas tanto tempo a dormir. e no final é este o resultado que temos? No fundo, no fundo, estás a tentar enganar-me. Na verdade, não houve acidente nenhum. Na verdade, não estás em coma. Estás a fingir que estás a dormir de cada vez que aqui venho, e vais abrir os olhos a qualquer instante, para me pregar um valente susto.
Sim… quem me dera. Mas acho que sonhar não custa. Por isso, é que pode magoar tanto, especialmente quando acordamos e a realidade não é aquela a que nos começáramos habituar, mesmo que tivesse sido somente por um minuto.
A tua pele parece tão fria aos meus lábios. Como se te tivessem colocado dentro de uma arca frigorifica. Já estavas assim quando eu cheguei? Desculpa, por não ter reparado mais cedo. Deixa-me fechar a janela. Esquece tudo isso. Acho que às vezes fico com tanta fome de te ver, que perco a racionalidade no que toca à estabilidade do teu corpo. Devia poder fazer melhor. Deveria de ser capaz de proteger o teu corpo. Sobretudo, se contarmos o facto de não teres iniciativa para o fazer.
Era suposto ser suficiente para te proteger.
Céus! Olha para a embrulhada em que me tornei. Até começo a chorar do nada. Isto não me acontecia antes de te conhecer. Até então, podia contar pelos dedos de uma mão apenas, as vezes que havia dado por mim a desfazer-me em lágrimas. Mas depois de ti, tornei-me numa confusão emocional. Como se todos os sentimentos que havia recalcado ao longo dos anos, passassem a nascer à superfície da minha pele, e se tivessem multiplicado por duzentos ou mesmo trezentos.
És um louco! E sei que esta observação por sua própria força te levaria às lágrimas, no entanto, de uma origem algo diferente daquelas anteriormente descritas. Consigo ouvir as tuas gargalhadas, como se propagassem para muito mais além de ti.
E por si só, já fico com provas que algo não está bem na minha cabeça.
De repente, fiquei com a mesma vontade de rir. Sei que por esta altura, já estarias em pulgas para saber as últimas novidades. Pois bem! Acho que vais ficar orgulhoso desta!
Tornei-me responsável pela equipa de futebol da nossa escola! Sim, bem sei, mereço uma bela palmadinha nas costas. Portei-me bem. Tenho que admitir algo, no entanto.
Não o queria fazer. Quando me elegeram, forçados pela normal vontade dos jovens de se livrarem da maioria das responsabilidades que lhe são colocadas em diante, e a pena que sentiam por mim, considerei seriamente a hipótese de recusar. Afinal de contas, é algo que me tiraria tempo de ti, de te vir ver, algo que em si já é tão reduzido. Sobretudo, se tivermos em conta que metade das horas oficiais de visita, são destinadas ao teu pai, e tanto tu como eu sabemos como é que as coisas correm quando nos cruzamos. Ele culpa-me. Eu culpo-me.
Terminemos essa conversa por aí.
Bem… acho que é melhor ir. Já me pareces um pouco mais quente. Pelo menos, aos meus lábios. Como se um pedacinho de calor tivesse realmente começado a nascer de dentro de ti. Isso é bom.
Não te preocupes. Eu passo por aquela enfermeira simpática, e peço-lhe que te traga mais um cobertor. No fundo, acho que ela mantém uma certa pena de mim. Mas não importa.
Mantém-te vivo. E acorda depressa.
Adeus.

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